7 - Roberto Carlos e as narrativas repetidas à exaustão até virarem verdade absoluta
Existe espaço para a narrativa fora das redes sociais?
Oi, como vai esta força? Espero que esta cartinha encontre você bem :)
Tenho estado longe das redes sociais, mas parece que o assunto na minha bolha é o mesmo: para onde vamos? Que internet é essa? Fazemos o que fazemos esperando aprovação e likes? Está todo mundo ecoando a mesma voz, os mesmos assuntos? O algoritmo veio para nos sacanear? Como alguém que se interessa por assuntos obscuros, essa questão me persegue a todo momento.
A internet tem um lado democrático que me encanta muito. Hoje qualquer pessoa pode ter um blog, um canal e compartilhar sua opinião. O problema é que, quando os algoritmos chegaram em nossa vida, com a ideia de simplificar e tornar a experiência da web personalizada, eles criaram uma massa achatada e que acaba ecoando a mesma coisa, mas de formas diferentes. Algumas opiniões tornam-se a única verdade em uma rede social como o Twitter, que estimula um debate sem fim de cancelamentos e afins.
Pois bem, como alguns já sabem, estou lendo a biografia sobre Roberto Carlos. Ainda não terminei, mas já cheguei na metade. RC é um cancelado antes mesmo de existir a internet. Não se manifesta sobre política, é o cantor que nossas tias adoram e que só aparece no especial de fim de ano, lembrando que mais 365 dias chegaram ao fim.
Quando comecei a ler o livro, eu tinha outra ideia sobre RC. Como amante de Jovem Guarda, eu odiava o fato de ele ser o único a ser lembrado no movimento. Num mundo em que existiam outros artistas tão talentosos quanto ele, como Eduardo Araújo, Os Incríveis e Vanusa, era inadmissível que só pensassem nele como o representante-mor do movimento que trouxe a música jovem para o Brasil.
Pois paguei com a língua. Na metade do livro, eu já tinha entendido a importância do véio para a música brasileira e os motivos de sempre lembrarem dele. Roberto Carlos é uma figura muito fascinante, suas contradições são o que dão aquele toque Sazón à coisa. A biografia me fez revisitar sua discografia (principalmente a fase de ouro, os anos 60 e 70, da qual falarei adiante) e perceber que eu mesma estava reproduzindo um preconceito idiota que haviam colocado na minha cabeça.
Talvez a pergunta que mais me façam sobre o véio é:
Por que ele é relevante?
Antes de responder à essa pergunta de forma bastante superficial, porque ela não vai dar conta da complexidade do fenômeno Rei, eu pergunto: o que é relevante? Quem decide isso? Será que ele é irrelevante para nós porque falhamos em entender nossas tias? O que fascina tanto elas em relação a esse homem?
A internet trouxe uma narrativa sobre Roberto Carlos que já circulava em círculos offline. Não há Cristo que dê conta de mudar isso. E isso não acontece apenas com ele. Quando repetimos a mesma coisa, corremos o risco de analisar tudo de forma superficial. Mas, veja bem, o Twitter é o superficial. São 150 caracteres para resumir pensamentos. Textos grandes e bem elaborados não são a parada dessa rede. É mais fácil lermos e consumirmos opiniões fragmentadas. É mais fácil nos guiarmos pelos nossos próprios algoritmos, ou seja, aquela opinião que uma thread nos dá sobre um assunto.
Wanderléa, Erasmo Carlos e RC no filme O Diamante Cor-de-Rosa, de Roberto Farias
Respondendo à pergunta de um milhão de reais, Roberto Carlos é relevante por que ele representou uma transição bem interessante na música brasileira. Se analisarmos sua discografia, percebemos que RC evoluiu junto com as tendências da nossa música. Nossas tias se tornaram mulheres ouvindo o véio cantar sobre sexo em vou me agarrar nos seus cabelos/pra não cair do seu galope, mas dez anos antes lá estavam elas mandando tudo para o inferno, o grito de uma juventude classe média que queria se rebelar dos pais e das autoridades. Esqueçam as letras bobinhas, RC veio para simbolizar uma espécie de rebeldia limpinha e aceitável, e tudo isso numa roupagem de arranjos incríveis e totalmente modernos para sua época.
Roberto sempre foi um perfeccionista. Nós o conhecemos por seu TOC, não usar marrom, sempre de azul, mas muito antes disso, lá estava ele na CBS (gravadora em que gravou 90% de seus discos), lutando para gravar com seus próprios músicos e arranjos. Desse perfeccionismo ninguém fala. RC gostava de tocar com membros do Renato e Seus Blue Caps, Renato Barros na guitarra e Paulo Barros no baixo, e tinha compositores que eram seus talismãs e que ele sempre incluía em seus discos. O Rei também praticamente inventou o conceito de órgão em suas músicas. Lafayette, o famoso organista que tocou com ele em diversos discos, foi algo que RC quis inserir em seus discos. Ele tirou o órgão da igreja e da música clássica e o inseriu no rock brasileiro. Só isso já responde parte da pergunta.
Meu disco preferido dos anos 60 é o de 1966, o da capa preta, com RC estampando com seu cabelinho tigelinha, bem Beatles. Para mim, ele sintetiza essas qualidades. Roberto Carlos conseguia emplacar vários hits no mesmo disco. Namoradinha de um Amigo Meu, É Papo Firme e Negro Gato são alguns dos sucessos que, em um único disco, ele conseguiu fazer com que tocassem à exaustão no rádio. Isso é relevante?
O disco de 1966, cujo conceito é incrível
De repente, no fim dos anos 60, quando a Jovem guarda já estava nas últimas, surge o Rei com seu cabelo encaracolado, sem alisamentos, calça boca-de-sino e com influências da soul music. Ele anunciou aquele fim, a era em que ele falaria sobre sexo e seus traumas de forma mais aberta em suas músicas, com Não vou Ficar, no mesmo disco em que temos As Curvas da Estrada de Santos. Essa música é de Tim Maia, que ele conhecia quando tiveram uma banda juntos, The Sputnicks. Eles se desentenderam, e a história é de que RC teria destratado Tim quando o cantor foi pedir ajuda ao Rei na Record.
Minha questão aqui não é com o ocorrido, que eu repudio para um caralho, pois Tim e Erasmo foram os primeiros amigos na vida do jovem RC, que ensinaram a ele o básico de rock. O problema é que, mais uma vez, só reproduzimos essa narrativa. RC foi um sacana? Foi. Mas será que só ele? Por que não falamos de Caetano Veloso casando-se com uma menor de idade? Por que ninguém fala que Chico Buarque foi a favor do projeto que censurava biografias não autorizadas? Só alguns são santos? Ao meu ver, a chave de análise não é bem por aí. É o mesmo caso de quando queriam censurar E o Vento Levou. Quer dizer que vamos fazer de conta que o filme não romantiza a escravização parando de exibi-lo? Que tipo de discussão é essa?
Voltando à relevância de RC, tem o lado pessoal da vida do cantor, que também contribui para o respeito do qual hoje ele goza. O Brasil adora mitos, e o Rei representa o que existe de mais meritocrático neste país. Ele saiu de uma cidade pequena, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para tentar o sucesso em São Paulo e Rio de Janeiro. E, meus irmãos, ele tomou muito naquele lugar. O sucesso só aconteceu com o estouro do disco de Quero que Tudo Vá para o Inferno, mas ele já tinha diversos outros futuros hits, como É Proibido Fumar e Parei na Contramão. O brasileiro se via naquele homem que sofreu um acidente quase fatal na infância, do qual falaria em O Divã, uma de suas músicas mais profundas:
Relembro bem a festa, o apito
E na multidão um grito
O sangue no linho branco
A paz de quem carregava
Em seus braços quem chorava
E no céu ainda olhava e encontrava esperança
De um dia tão distante
Pelo menos por instantes
Encontrar a paz sonhada
Essas recordações me matam
Nos anos 70, ele também entraria na fase erótica, como comentei anteriormente. Gosto muito de pensar numa chave de análise que talvez explique por que nossas tias amam tanto o véio. RC era um homem decente, limpinho e que, ainda assim, sabia falar safadezas ao pé do ouvido. Lá estava ele falando dos botões da blusa da amada, que ele desabotoava desajeitadamente. Ele representa mais que o homem do especial, ele é a fantasia de muitas mulheres. No livro do Paulo César de Araújo, ele nos conta que mulheres gozavam (e mandavam cartas contando isso) ouvindo essas músicas eróticas.
Gosto muito dessas canções, porque, de novo, elas estão de acordo com aqueles anos 70 da porteira grande, em que Wando e Odair José cantavam para a dona de casa comum, que se sentia especial e amada por aqueles cantores. É uma relação afetiva bem interessante. Esses tempos eu coloquei Cama e Mesa para uma amiga muito querida ouvir. Ela ficou chocada com o teor da letra. É uma letra bem erótica e bem elaborada:
Você é o doce que eu mais gosto, meu café completo
A bebida preferida e o prato predileto
Eu como e bebo do melhore e não tenho hora certa
De manhã, de tarde, é noite, não faço dieta
E esse amor que alimenta minha fantasia
É meu sonho, minha festa, é minha alegria
A comida mais gostosa, o perfume e a bebida
Tudo em minha vida
Mesmo nos anos 80 e 90, quando sua relevância foi perdendo força, ainda podíamos sentir a força do Rei. Quem não cantou Como é Grande Meu Amor por Você no colégio? Eu cantei para minha mãe. Ainda há o lance de que RC é esse artista que cresceu conosco, a gente querendo ou não. Pelo menos um verso de uma música dele nós sabemos. E isso, para mim, é o que sempre vai atestar a relevância do Rei no cenário musical. Que outro cantor conseguiu isso? Chico Buarque, talvez? Talvez, mas o alcance de RC é em todas as classes sociais, coisa que talvez Chico não consiga.
Do disco de Cama e Mesa, acho esta foto uma lindeza só
O intuito desta cartinha não é fazer você sair fã de Roberto Carlos, mas suscitar uma discussão sobre narrativas e música brasileira. Quem dita a relevância de um artista nem sempre somos nós, mas aquela realidade que criam para ele. Helen, uma amiga bem querida, escreveu na última newsletter dela como criamos realidades para lidarmos com a dureza do mundo. A realidade que criaram para Roberto Carlos é a do homem de branco nos especiais. Ela é real, palpável, mas existe algo flutuando aí. O homem dos parágrafos anteriores deste texto também é uma realidade. Abraçar todo esse pacote é admitir que, no fim das contas, somos cheios de contradições. Ninguém pode ser perfeito o tempo inteiro.
A cartinha está chegando ao fim, e eu queria agradecer a você que chegou até aqui. Se este texto causou algum tipo de reflexão, você pode responder à cartinha por e-mail mesmo ou falar comigo pelos seguintes canais:
Um beijo e até a próxima,
Jess
AMEI ESSA NEWSLETTER!
Eu gosto bastante do Roberto, embora eu não conheça muito sobre sua vida (conheci um pouco mais agora), mas as músicas dele são um tesouro para mim.
As Curvas da Estrada de Santos é uma das minhas preferidas da vida, com certeza!
Você falou da Cama e Mesa e me lembrei de Rotina. Com certeza uma das músicas mais linda já escritas.
Amiga! Talvez eu escreva um textão. Primeiro, muito obrigada pela citação ♥ na hora que cheguei nesta parte, ia comentar o trecho do Graciliano Ramos que publiquei lá, "Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva." — acho que isso se casa com o Roberto, que eu também confesso que argumentei contra por muitos anos como qualquer twitteiro de esquerda que quer ser cool; mas meu motivo original era outro: desde bebezinha meus pais me acordavam com o som no maior volume ouvindo RC; ele foi tema de romance deles, parto da minha irmã, e até divórcio também. Então ele meio que foi um trauma muito grande pra mim, uma lembrança ruim (mas boa também), então concordei com os jovens só pra ter um bolo de argumentos contra o RC.
Mas já comprovei toda sua teoria nesse meu relato. Lady Laura, mamãe sempre tocava à noite na nossa primeira casinha aqui em SP, numa das mais de 40 fita K7 da BASF que papai gravava e marcava "RC 5" e outras, antes da popularização do CD. Papai ama o Côncavo e o Convexo (assim é nosso amor... no sexo), Coisa Bonita é um forrozinho gostoso e quase anti-gordofóbico (mas quase gordofóbico também kkkkk contrastes), Mulher Pequena: dona Heronita nos seus 1,42 se sente representada... e eu, querendo ou não, jamais deixei de amar os Rocks, sonho com o Caminhoneiro, AMO quando o Erasmo canta junto e RC com pena no cabelo era um charme que só ele! Esse seu cd favorito foi um que comprei pra mamãe uma vez (porque papai levou todos embora).
Como eu te disse no privado, 'Existe espaço para a narrativa fora das redes sociais?' foi um subtítulo potente demais. Se não existir, a gente inventa (pra se distrair, como diz o Cazuza), a gente abre um buraco! Porque essa superficialidade das redes eu não quero mais. Nossas últimas conversas e esse texto não sei se me curaram, mas me reconciliaram com esse cara, que há 30 anos escuto sem parar e sem querer, em todos os lugares possíveis. Até me lembrei aqui agora (estraguei o final do comentário kkk) de uma professora minha da primeira série (ano 2000!) fofocando com a colega da sala ao lado sobre ele e Maria Rita (talvez seja até do prezinho, pois ela faleceu em 99). Imagina, lembrar de uma fofoca de quase 1/4 de século? hahaha já tô virando coroa — e amando.