18 - A São Paulo de "A Próxima Vítima" 30 anos depois
Ver telenovela pode ser uma aula de antropologia, basta saber olhar.
Quem me acompanha há mais tempo nesta newsletter sabe que ela foi praticamente inaugurada quando eu me mudei para São Paulo, há dois anos:
3 - Um mês em São Paulo and counting
Um dos meus primeiros textos por aqui. Aqui tem "Saudosa Maloca", Carolina Maria de Jesus e Adoniran Barbosa.
Quando eu saí de Porto Alegre, minha cidade natal, eu estava de peito aberto para o que São Paulo tinha a me oferecer, de bom e ruim, dualidades que são tão presentes por aqui. Eu já sabia do caos, já havia passado mal no meio de uma estação de metrô, mal-acostumada com o mar de pessoas nesse vaivém de metrô, trem e ônibus.
Dois anos depois minhas pernas curtas mas com passadas longas continuam fazendo os mesmos caminhos e descobrindo tantos outros em São Paulo. Esses dias eu fiz o caminho do tramway que passava aqui perto, pois como tudo na minha vida é um grande retorno às coisas de que gosto, eu moro perto do Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa e os Demônios da Garoa em Trem das Onze.
À medida que eu ia conhecendo mais São Paulo, a vontade de rever A Próxima Vítima, telenovela de 1995 e escrita por Sílvio de Abreu, só aumentava. Eu tinha muita curiosidade em revisitar essa trama com o olhar de uma moradora da cidade em que a história se passa. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha medo de estragar uma lembrança muito forte e bonita de A Próxima Vítima. Além de ser minha telenovela preferida pela fusão mais incrível entre folhetim e romance policial que a televisão brasileira já conheceu, ela foi meu acalento durante a pandemia.
Assim que eu e minha esposa terminamos Elas por Elas, telenovela de Cassiano Gabus Mendes, de 1982, eu propus a ela reassistir à Próxima Vítima, agora que já tínhamos nos habituado a São Paulo. Ela queria ver Zazá, mas topou. Acho que o resultado fala por si só: sempre que nos sentamos para ver, vemos dois, três capítulos de 50 minutos de uma vez. Não é à toa que um dos versos de Vítima, de Rita Lee, a música de abertura de A Próxima Vítima, diz:
Com a sutileza de um furacão, você vai tomando conta do meu coração
Poucas telenovelas conseguiram captar tão bem a atmosfera de São Paulo quanto A Próxima Vítima. Maldade e bondade, belo e feio, exclusão e inclusão são palavras que ganham um contorno diferente por aqui. São dualidades que convivem entre si e aparecem misturadas nos mais variados espaços da cidade. É você conviver com a degradação ao mesmo tempo em que aquele lugar é alvo da especulação imobiliária e do descaso do poder público (sim, Centro de São Paulo, estou falando com você), o que acaba valorizando uma determinada região e expulsando moradores antigos. É você ver pessoas bem-vestidas circulando entre quem não tem um prato de comida e precisa dormir embaixo do Elevado João Goulart, o Minhocão. São inúmeras camadas, pois você atravessa uma rua e a atmosfera muda completamente.
A abertura de A Próxima Vítima já consegue captar bem essa ideia da dualidade. Enquanto pontos turísticos da cidade aparecem, como o Parque Ibirapuera, o Copan e o antigo Hotel Hilton, pessoas aleatórias vão sendo alvejadas e somem, aludindo aos assassinatos que acontecem na trama de Sílvio de Abreu. É interessante analisar a semiótica dessas imagens. Enquanto corredores passam pelo Ibirapuera tranquilamente, alguém é alvejado, mas eles não percebem e continuam seu treino. Essa dinâmica de “não perceber” o que está acontecendo diante dos seus olhos é algo que vejo muito por aqui. Isso só muda na abertura quando aparece o Parque Trianon e um pedestre reage quando outro é alvejado.
É como se as mortes da abertura estivessem convivendo pacificamente com o cotidiano de quem circula por São Paulo. E mais uma vez: o belo e o grotesco andam de mãos dadas. Os monumentos continuam lá, mas as pessoas não, há algo de grotesco acontecendo, mas o que prevalece é o belo, o que São Paulo deseja mostrar aos turistas. Pode ser uma grande viagem da minha cabeça, é claro, mas Hans Donner, o designer da Rede Globo, conseguiu criar uma abertura que fala muito nas entrelinhas, ainda que 30 anos nos separem do lançamento dessa telenovela.
Para quem não conhece o enredo, o eixo principal de A Próxima Vítima é os assassinatos que vão acontecendo ao longo da trama. Logo no primeiro capítulo, aos nove minutos, Sílvio de Abreu já mete o pé na porta e assassina o primeiro personagem da história: Paulo Soares (Reginaldo Faria). Ele morre atropelado por um Opala preto em um dia de forte temporal em São Paulo, quando saía apressado de seu escritório após um telefonema misterioso. A partir daí, mais personagens começam a morrer, e vamos descobrindo que todos têm uma ligação entre si, a partir de uma lista do horóscopo chinês. Essa lista “prevê” quem será a próxima vítima.
Mas, como a telenovela não podia apenas viver dos crimes, os três autores de A Próxima Vítima (Alcides Nogueira e Maria Adelaide Amaral foram colaboradores de Sílvio de Abreu, então eu também os considero autores de certa forma) criaram uma trama que consegue condensar as dualidades e tensões de classe através de lugares e personagens. São Paulo é uma das protagonistas da telenovela, pois os lugares frequentados pelos personagens, suas interações neles, podem nos dar pistas muito interessantes sobre a forma como os autores construíram relações amorosas e de ódio ao longo de A Próxima Vítima.
O caso mais evidente dessa questão de classe e lugar é o da Bonitona do Morumbi/Helena (Natália do Vale) e de Juca (Tony Ramos). Juca é um feirante que tem uma banca no famoso Mercado Municipal de São Paulo. Em 1995, esse lugar era conhecido como Mercado da Cantareira por conta de sua localização na Rua da Cantareira. Já Helena é uma ricaça que mora no Morumbi (por isso é apelidada de Bonitona do Morumbi), no famoso edifício de luxo Penthouse, na Avenida Giovanni Gronchi, na Zona Sul, ao lado da comunidade de Paraisópolis. Hoje em dia o edifício está em plena decadência.
Os dois se conhecem em um lugar ao qual Juca não pertencia, mas que frequentava: o Teatro Municipal. Juca é um amante de óperas e junta o suado dinheiro que ganha na banca para assistir a esses espetáculos, majoritamente frequentados por quem tem dinheiro. Por uma situação de engano na chapelaria do Municipal, eles acabam se conhecendo e saindo juntos na mesma noite. Vale dizer que, nesse momento, Helena não sabe que Juca é feirante e fica encantada com a cultura e a educação daquele homem. A partir desse encontro, começa o triângulo de A Próxima Vítima, que também envolve Ana (Susana Vieira), amor platônico de Juca e dona de uma rede de pizzarias na Mooca e no Bixiga.
Durante a primeira conversa entre Juca e Helena, ele se apresenta como “comerciante”. Ela, é claro, não pensa que ele pertence a um meio social mais humilde, talvez porque pense que um homem como ele, com tanto capital cultural, jamais seria pobre. Helena acaba descobrindo que o comerciante era feirante quando decide visitá-lo no Mercado Municipal. Aliás, essa cena é uma aula sobre pertencer a lugares sociais, pois Helena fica visivelmente desconfortável ao colocar os pés no local de trabalho de Juca. Ela nem conhecia aquele lugar até aquele momento, inclusive.
Ao avistar Juca atraindo os clientes para comprarem na sua banca, ela o vê de chinelo de dedo, bermuda e camisa meio aberta. Ela vai toda arrumada, chique, claramente mostrando que aquele meio é estranho ao dela. Esse primeiro choque entre eles me lembrou o quanto São Paulo é um lugar de inúmeras facetas. Para a Bonitona do Morumbi, São Paulo é o lugar dos “trombadinhas”, forma pejorativa a qual ela se refere às crianças em situação de rua de Paraisópolis que pedem esmola no sinal, dos carros blindados, do limpinho e bem cuidado. Para Helena, a pobreza é uma escolha, e ela terá inúmeros choques com sua irmã Júlia (Glória Menezes) a respeito de classe social. Helena é uma típica classista e que viveria isolada em seu prédio com piscina na varanda se pudesse.
Já para Juca, a vida em São Paulo é acordar às 03h da manhã para ir trabalhar, zelar pelo futuro de seus dois filhos, pois ele deseja que ambos estudem e não sejam feirante como ele. Ele mora na Mooca, um bairro que na época ainda não era tão valorizado como hoje em dia, com os tios e os filhos. É interessante perceber como até a música escolhida como trilha sonora das cenas de Juca no Mercado Municipal fala sobre classe social: Estação São Paulo, de Adryana Ribeiro e Demônios da Garoa. A música é claramente uma homenagem a São Paulo de Adoniran Barbosa e a quem faz São Paulo acontecer: os trabalhadores como o próprio Juca.
Ah, São Paulo, ah, São Paulo
Vem, bate o ponto no meu coração
No mercado ou no armazém
Sinto no meu sangue sua eterna pulsação
Bate no meu peito, seu enorme coraçãoEstação São Paulo - Adryana Ribeiro e Demônios da Garoa
Nessa cena do Mercado Municipal, quando o futuro casal se encontra no local de trabalho de Juca, um detalhe não dá para passar despercebido: o diálogo sobre os vitrais. Juca, um apaixonado por arquitetura, comenta com Helena sobre os vitrais do Mercado Municipal, que tinham sido reformados nos anos 80 e tinham sido criados por Conrado Sorgenicht Filho, cuja família trouxe a técnica dos vitrais para o Brasil. Esse diálogo aparentemente simples traz muitos simbolismo. Para começar, Helena não sabe nada sobre os vitrais, evidenciando que, embora ela seja muito rica, seu capital cultural é zero. Além disso, existe a questão do grotesco versus o belo novamente. Juca fala do belo, dos vitrais, enquanto Helena só enxerga a degradação das roupas dele, daquele lugar que cheira a carne e a peixe.
O olhar dos dois é muito diferente justamente por essa diferença de lugar. Por uma questão de tamanho e social, existem muitas São Paulo em uma única. A Próxima Vítima acerta muito ao mostrar isso ao espectador. Tenho certeza de que a minha São Paulo é muito diferente daquela de quem está lendo este texto. E é através do não falado, do lugar em si, que os autores de A Próxima Vítima conseguem escancarar isso para nós.
Ainda nas questões de lugar e classe, o núcleo da família Ferreto também nos traz muitos insights sobre a elite paulistana e quatrocentona. Proprietários do Frigorífico Ferreto, a família mora nos Jardins, zona nobre de São Paulo, onde só existem mansões gigantescas e concessionárias. Quem já passou por lá para ir ao MIS (Museu da Imagem e do Som) sabe o quanto é impressionante andar por aquelas ruas e ver casarões com muretas inatingíveis, como se estivessem nos dizendo que não somos bem-vindos (spoiler: não somos mesmo, risos). Foi essa atmosfera que o time de cenários da Rede Globo reproduziu na mansão cenográfica dos Ferreto. É um casarão com grandes colunas, uma coisa no estilo neoclássico, bem típica daquela região.

Porém, os Ferreto não são ricos de berço, pelo que a trama nos dá a entender. Na verdade, os pais das irmãs Ferreto são imigrantes italianos e que trabalharam para enriquecer. O único que pode ser realmente chamado de quatrocentão ali é Adalberto (Cecil Thiré), marido da personagem Carmela (Yoná Magalhães), mas ironicamente ele é o pobretão do núcleo Ferreto. Perdeu tudo no jogo, então vive no Centro de São Paulo e tem uma oficina mecânica.
Por fim, não daria para comentar sobre Ana (Susana Vieira), uma das forças motrizes de A Próxima Vítima. Embora todo o Twitter a odeie e não queira que ela fique com Juca, eu sempre adorei essa personagem. Por quê? Porque é fácil se identificar com ela. Ana é dona de uma rede de pizzarias na Mooca e no Bixiga (bairros muito marcados pela imigração italiana), uma mulher que amarga um relacionamento furado de 30 anos como “a outra” de Marcelo (José Wilker), casado com uma das irmãs Ferreto, Francesca (Tereza Rachel). A todo momento Ana vai ser ofendida por causa de sua classe social. Ela grita, berra, tem um pesado sotaque italiano (mesmo não sendo italiana) e cheira a gordura. É chamada de “a cozinheira” por outros personagens, uma forma pejorativa de rebaixá-la por sua classe social.
A relação entre Ana e Marcelo é um exemplo de como é quase impossível a conciliação entre a São Paulo dos ricos e a dos mais humildes. Em uma das brigas entre eles, Marcelo ofende Ana dizendo que jamais amaria uma mulher como ela, que fica descalça em casa. Ao longo da telenovela, ele demonstra ter vergonha dela, deixando bem claro que Ana só serviu para gestar os três filhos que ele tanto queria ter.
Saindo um pouco da análise da telenovela, devo dizer que me emocionei muito revisitando lugares que aparecem em A Próxima Vítima. Estive no Parque Ibirapuera na semana passada e, quando vi o Monumento à Bandeira, que aparece na abertura da telenovela, dei um grito. É como se a gente se sentisse parte desse universo da telenovela. Quando assisti à Próxima Vítima pela primeira vez, bairros e lugares quase sempre passavam despercebidos. Mas, reassistindo, posso dizer que Sílvio de Abreu conhecia muito bem a cidade na qual ambientou sua trama. O fato de Irene (Viviane Pasmanter) estudar na Faculdade do Largo São Francisco, a mais conceituada de Direito da cidade, já nos dá uma pista bem clara de sua classe social. Só a nata da sociedade estuda lá. Não é à toa que se trata da faculdade de onde saíram 13 presidentes da República (!).
Muitos lugares citados pela telenovela sumiram, decaíram ou mudaram. O edifício Penthouse, a casa da Bonitona do Morumbi, é um deles. Um dos lugares mais luxuosos de São Paulo está literalmente caindo aos pedaços, afundado em dívidas de IPTU. Por ficar ao lado da comunidade de Paraisópolis, que também passou por um grande crescimento de 1995 para cá, o imóvel desvalorizou a ponto de ser considerado “barato” morar lá. De acordo com esta reportagem do jornal O Globo, dá para morar lá pagando R$ 6.500 de aluguel, valor considerado baixo pela região na qual o edifício fica. Essa arquitetura com uma piscina em cada andar é típica da cafonice dos ricos de São Paulo. Eu queria muito encontrar declarações do Sílvio de Abreu explicando como ele chegou à ideia de fazer com que a Bonitona do Morumbi morasse nesse edifício, pois acho genial a forma como vai se criando as tensões de classe por meio desses lugares.
Este texto acabou ficando muito maior do que eu havia pensado. É incrível como uma telenovela pode fazer a gente refletir tanto. Em 2020, quando vi A Próxima Vítima pela primeira vez, eu escrevi outro texto sobre ela, mas com outro enfoque. Convido você a ler, caso seja do seu interesse. Nele, minha abordagem é sobre as referências incríveis que Sílvio de Abreu, de Don Corleone aos filmes noir, traz em A Próxima Vítima.
Para quem gosta de arquitetura e São Paulo, recomendo o canal do Youtube São Paulo nas Alturas, de Raul Juste Lores. Tenho diversas críticas a alguns de seus vídeos, mas ele faz algo muito legal: nos mostra como São Paulo está em constante evolução. Ele explica com mais propriedade do que eu as mudanças pelas quais a cidade está passando e discute alternativas além de concretar tudo e erguer prédios espelhados.
Se você chegou até aqui, muito obrigada por ler este texto. Se quiser comentar, é possível responder a este e-mail (se você for assinante) ou comentar na caixinha da versão-web do Substack.
Um beijo e até a próxima,
Jess
Quando assisto Alice, da HBO, sinto algo também, como não-paulistano que está conhecendo a cidade. Moro e nasci no interior mas já fui bastante pra capital.
É uma cidade que proporciona muitas emoções conflitantes.
Obrigado pela leitura agradável!
Comecei a assistir na semana passada (quando criança, só tinha medo mesmo haha), a diferença do texto pras novelas atuais é absurda!