3 - Um mês em São Paulo and counting
Quando a Saudosa Maloca de Adoniran cruza com o Quarto de Despejo de Carolina
Oi, como vai essa força?
Numa quinta-feira, 10 de fevereiro, peguei o avião para São Paulo apenas com a passagem de ida. Eu achei que não fosse chorar, mas quando em despedi da minha mãe no aeroporto, foi impossível não derramar algumas lágrimas. Quando o avião subiu, senti que estava deixando uma fase para trás, 1/3 da minha vida ficou lá embaixo, em Porto Alegre, impregnado no concreto do Centro Histórico e nos muros da zona leste.
Fotografia que tirei antes de o avião decolar para São Paulo
Na cartinha anterior, talvez tenha faltado explicar com maiores detalhes minha relação com São Paulo. São Paulo foi a primeira cidade para qual eu viajei quando adolescente, aos 13 anos. Vim para cá conhecer minha cantora preferida, Sylvinha Araújo, e ficar hospedada na casa dela. Dá para imaginar como foi, não?
Naquela época, eu conheci a São Paulo dela, da rodovia Raposo Tavares, que a gente sempre atravessava porque ela morava na Grande São Paulo, uma São Paulo bem diferente daquela com a qual eu teria contato mais tarde, lá pelos 16 ou 17 anos. A outra São Paulo é a da zona norte, de Santana, que conheci ao lado de uma grande amiga da adolescência, a Tariana. Nos conhecemos no Orkut, e eu vim para cá conhecê-la pessoalmente e assistir ao show gratuito dos Mutantes no Parque do Ipiranga. Essa já era a São Paulo das lojas de discos, da cerveja gelada no bar, do asfalto minúsculo. E depois veio a São Paulo do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), a dos teatros, percorrendo alguns lugares onde Nathalia Timberg esteve.
O TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), no Bixiga, espaço de disputas e resistência
Todas essas São Paulo são experiências pela visão de outras pessoas. Quando cheguei aqui só com uma passagem de ida, eu sabia que, agora sim, eu teria minha própria visão. Isso pode ser assustador, especialmente se você cria uma expectativa sobre um lugar. Minha expectativa sobre São Paulo era que ela anulasse Porto Alegre e minha relação conflituosa com esse lugar. Porto Alegre tinha sido minha casa durante 30 anos, e eu tinha dúvidas mil se poderia criar o conceito de “casa” aqui em São Paulo.
No segundo dia de mudança, eu chorei sentada no chão. Foi um choro que lavou minha alma. Passar por um processo de mudança é algo muito forte, é meio como perder referências e ter que refazê-las. Como bem pontuou minha terapeuta, eu não estava mudando apenas de estado, mas meu corpo tinha mudado em dois anos de pandemia, e eu estava me adaptando a ele novamente. Estava descobrindo quem era a Jess, o que ela gostava de vestir, como se todas minhas referências tivessem ido para o saco. Tudo isso brotou na hora daquele choro. Já dizia Letrux em Vai Brotar:
Quem não chora não consegue ir embora
E sinto que chorei porque percebi ali, sentada no chão de taco, tudo o que eu havia deixado para trás. Não costumo me apegar muito a signos, mas é uma verdade inescapável: cancerianes são pessoas apegadas às coisas. Por mais que eu tivesse uma relação de amor e ódio com Porto Alegre, eu tinha que admitir meu apego. Aquele choro era uma forma de fechar um ciclo, coisa que achava que eu já tinha feito quando passei a chave na fechadura do meu antigo apartamento. Mas existem coisas menos físicas, e mais emocionais, quando falamos de mudanças. Chorei porque agora eu teria que criar outras referências, logo eu, uma canceriana tão apegada ao passado e com tanto medo de olhar para o futuro. Foi bom ter aquele momento e admitir que eu não tinha a obrigação de me sentir adaptada no segundo dia de casa nova.
Eu e a patroa sempre brincamos que “somos duas caipiras em São Paulo”. Aqui entra uma parte que se antes era assustadora, agora chega até a ser divertida: refazer as sinapses. Nos primeiros dias, percebi que eu andava muito cansada, como se meu cérebro tivesse apagado. O motivo era bem óbvio, mas eu não conseguia perceber. Lá na minha antiga rua, em Porto Alegre, eu não tinha que atravessar e olhar para três direções diferentes. Aqui, vem carro de tudo quanto é lado, se duvidar até do céu. Na adolescência, eu tinha o sonho mórbido de que morreria atropelada. Agora, com 30 anos, eu tenho certeza de que se for para morrer em São Paulo, será atropelada. Além disso, eu vim morar em um prédio de 24 andares, cuja visão da minha janela é de parte da zona norte. Eu me sentia cansada só de olhar. Meu cérebro parecia uma pasta, não dava para pensar. Olhando para esse primeiro mês, nem sei como sobrevivi trabalhando e tendo que me adaptar, o que é um processo constante.
Minha mãe me perguntava como eu estava, eu só pensava na palavra “cansaço”. Descer 24 andares de elevador para ir até o mercado me cansava como nunca na vida. Mas aí começaram as vantagens: eu não tinha que me cansar ouvindo meus vizinhos bêbados e gritando na minha janela. Eu tinha silêncio quando ia dormir. Aos poucos, as sinapses foram se refazendo, e eu fui percebendo de que tinha deixado coisas que me incomodavam demais para trás. E nem sempre isso é fácil, porque se incomodar com o que o conhecemos é muito melhor.
“Do meu esconderijo do 20 andar, espio noite e dia sua vida secreta”: visão da minha janela
A Carla escreveu uma newsletter sobre nossa relação com os espaços, e eu me senti muito contemplada por algumas coisas que ela disse. Dois anos de pandemia (and counting) nos fizeram refletir e pensar demais sobre onde moramos. Nossa casa precisa ser onde só dormimos? Por eu fazer home office há sete anos, sempre tive diversos problemas com os espaços em que tive. Na casa da minha mãe, por exemplo, eu passava o dia sendo interrompida pela família, num espaço minúsculo de trabalho, constantemente com dores nas costas. Quando saí de casa, me mudei para um apartamento cuja presença da polícia era constante. Os vizinhos brigavam muito. Eles bebiam e gritavam até altas horas. Tudo isso, quando a gente soma, vai nos adoecendo.
Sou uma interessada por arquitetura e, desde que vim morar em São Paulo, esse assunto tem me absorvido cada vez mais. É difícil não estar aqui, nessa imensidão, e não pensar nisso. Como os espaços são projetados? Que aluguéis são esses? E a especulação imobiliária? São sementes que foram plantadas em dezembro de 2021, quando estive em São Paulo procurando apartamento e visitei a exposição sobre Carolina Maria de Jesus, no IMS.
Carolina Maria de Jesus, em seu Quarto de Despejo, falava muito sobre a favela do Canindé, que ficava em um pedacinho do Tietê. Logo após a saída dela da favela, os barracos foram demolidos para dar lugar ao progresso de São Paulo. O Canindé é o quarto de despejo, enquanto a sala de visitas é o lugar frequentado por quem tem acesso à moradia digna. Em Quarto de Despejo, Carolina já denunciava as condições precárias da São Paulo que está bem além das pistas da Avenida Paulista. Com o sucesso do livro, Carolina conseguiu sair da favela e foi morar em Santana, aqui perto de casa, um lugar de classe média. Em Casa de Alvenaria, ela nos conta como aqueles moradores a olhavam torto, mas ela não se importava, Carolina finalmente tinha a moradia digna com a qual sempre sonhou. Mas quantos não tiveram o mesmo direito? E quantos ainda não tem esse direito? A denúncia de Carolina continua atual.
Carolina no Canindé
O barraco de Carolina no Canindé se cruza com a Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, imortalizada pelos Demônios da Garoa. São duas obras da mesma época, dos anos 50, e que conseguem cristalizar os problemas de São Paulo. Desde dezembro, tenho escutado bastante Demônios da Garoa e, ao prestar atenção melhor na letra de Saudosa Maloca, percebi o quanto a denúncia de Adoniran se misturava, de certa forma, à minha busca por moradia nesta cidade.
São Paulo é um lugar cujos aluguéis podem variar muito, dependendo de onde você for morar. Mas não é só isso: a gentrificação também está espreitando você. Bairros que antes não eram valorizados passam por esse processo, expulsando antigos moradores. Morar em São Paulo por um valor justo e acessível é uma questão difícil, porque isso significa estar em lugares que muitas vezes não proporcionam acesso ao mínimo e essencial, como transporte público.
Em Saudosa Maloca, que foi gravado como Saudades da Maloca em 1951, temos a história de um homem que passa em frente ao lugar onde ficava seu barraco e começa nos contar como foi que ele acabou sendo demolido:
Foi aqui, seu moço
Que eu, Mato-Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia
Nós nem pode se alembrar
Veio os homem cas ferramenta
O dono mandou derrubar
De acordo com o livro A história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir, a inspiração para Saudosa Maloca veio quando Adoniran encontrou Mato-Grosso, um amigo, na rua e lhe contou que o prédio em que ele morava seria demolido. O que adoro em nessa música é como ela consegue ser irônica e ao mesmo tempo denunciar o que acontecia em nome do progresso em São Paulo. A fina ironia deste verso é demais:
Pegamos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciar a demolição
Estar em São Paulo é cruzar todos os dias com milhões de saudosas malocas. No domingo passado, estive na Alameda Santos e ali, perto da Paulista, foi demolido um restaurante tradicional italiano, da década de 50, para dar lugar a um hotel. Só sobrou a fachada do restaurante, cujas vigas dava para ver, a força daqueles alicerces é algo de surpreender, porque nem eles conseguiram cair. Reflexões de uma história que insiste em se manter em pé a despeito do que tentam fazer com ela.
Na época em que Adoniran escreveu Saudosa Maloca, São Paulo preparava-se para comemorar seu IV centenário. Na mídia, havia um movimento de tentar mostrar a única São Paulo que importava: a do progresso. Qualquer narrativa dissidente era ignorada. Por isso, narrativas como a de Carolina e Adoniran são tão importantes. Elas nos falam de uma época com um olhar não hegemônico, o olhar de quem era pobre, negro ou imigrante nessa cidade enorme.
A Saudosa Maloca de Adoniran é o reflexo da crise de 29, que fez com que o café despencasse e a especulação imobiliária se tornasse um negócio rentável. O que Adoniran faz é relembrar uma São Paulo quase idílica, que já foi engolida pelo progresso. É uma obra-prima da nossa música em todos os sentidos. Gosto muito de como ele nos coloca dentro da música usando “seu moço”, “se o senhor não tá lembrado, dá licença de lembrar”. Essas e outras construções populares, de como as pessoas falavam na época, com certeza contribuíram para eternizar a música.
E se o assunto é São Paulo, não dá para não falar sobre São Paulo - Sociedade Anônima, filme do Person, de 1965, com Eva Wilma e Walmor Chagas. No filme, a personagem do Walmor quer ser bem-sucedido, ter uma vida toda arrumadinha, mas acaba enlouquecendo. São Paulo faz com que ele perca a sanidade. Para mim essa é uma metáfora muito poderosa dessa faceta menos conhecida que a cidade carrega. São Paulo pode ser hostil e segregadora como na Saudosa Maloca e no Quarto de Despejo. Ela também pode ser acolhedora, mas o problema começa quando a gente enxerga apenas o perímetro da Avenida Paulista, ou até mesmo de Santa Cecília. Isso vale para qualquer cidade, aliás.
São Paulo S.A: Um dos melhores filmes sobre São Paulo
Não tenho saído tanto, mas nas vezes em que faço isso, gosto de observar a paisagem. Gosto de tirar fotografias. Uma das minhas facetas preferidas da cidade é a gastronomia. Tenho conhecido frutas novas e apreciado muito pequenas descobertas. Por exemplo, o conceito de “lanche” aqui é sempre um pão francês muito bem servido de frios, e eu nunca aguento comer. Eis alguns registros que fiz aqui na cidade:
Baião de dois vegetariano:
que delícia de comida é essa, meu povo?
Nesse um mês de São Paulo, o transporte público também é uma questão que me pega muito, e novamente influenciada por Demônios da Garoa, quero comentar brevemente sobre Trem das Onze. Essa música é de uma genialidade! De certa forma, eu acho que a letra sintetiza um pouco o que é o transporte aqui:
Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às 23h
Só amanhã de manhã
É legal porque achamos que o eu-lírico da música está deixando a pessoa por não amá-la mais, mas é porque o trem das onze não passa mais depois de um certo horário. Mais uma vez Adoniran faz uma crônica impecável sobre São Paulo. Ele faz referências ao Tramway da Cantareira, que não existe mais. Hoje, parte do trajeto desse tramway, é feita pela linha azul do metrô, a linha que atende a região onde estou morando. Pelos gráficos com dados do Arquivo Nacional, percebemos o número de pessoas que usava esse transporte: eram mais de 7.000 na década de 40. Desde sempre, o progresso atropela essa cidade.
E, fazendo essas tramas entre coisas de que gosto, o tempo vai passando aqui em São Paulo. Ontem fui assistir a um espetáculo de teatro sobre a amizade entre Dener, um dos nossos maiores estilistas, e Maria Thereza Goulart, viúva de Jango. Dessa vez, a São Paulo da moda, da casa de Dener no Pacaembu, me atravessou. Fiquei pensando muito na era em que a moda era pensada de outra forma, quando fazíamos as roupas e tinha todo um tempo para se pensar nessa produção. Apesar de eu gostar do prêt-à-porter, a gente sabe como foi isso que proporcionou o surgimento do fash fashion e de todos seus efeitos. É um assunto que quero falar nas próximas cartinhas, então me aguardem.
Dener e uma de suas criações
Este vídeo é da casa de Dener, no Pacaembu, que está à venda… Aparentemente, o assistente do estilista, José Gayegos, para quem Dener deixou a casa, colocou à venda… Olha o tamanho desse lugar!
Mais uma vez, não farei a sessão da arca perdida, porque não quero abusar da boa vontade de quem me lê. Esta cartinha ficou enorme, mas fiquei feliz de ter conseguido escrever. Os dias têm passado em uma velocidade absurda, e eu senti que precisava escrever sobre essas coisas antes que elas fossem engolidas pela minha cabeça.
Então é isso. Obrigada a você que chegou até aqui, peço desculpas pela cartinha enorme.
Se você curtiu a cartinha e quiser comentar sobre ela, é possível responder este e-mail. Caso queira trocar uma ideia por outro lugar, você pode me encontrar em:
Um beijo e até a próxima,
Jess