8 - Aproximações (ou não) entre "A Sucessora" e "Enervadas"
"Vou jogar fora no lixo esses romances de sociedade", disseram os modernistas.
Oi, como vai esta força? Espero que esteja tudo bem com você :)
Antes de começar esta cartinha, gostaria de agradecer a todas as pessoas que assinaram esta humilde newsletter nos últimos tempos. Fiquei impressionada com a quantidade de novos assinantes, ainda mais depois daquele texto sobre Roberto Carlos. A você que chegou agora, se aprochegue que a casa é sua.
No dia 27 de março, o Canal Viva começou a reprisar A Sucessora, segunda novela de Manoel Carlos na Rede Globo, adaptação homônima do romance de Carolina Nabuco. Quem me acompanha há mais tempo sabe que essa obra é talvez a minha preferida em termos de teledramaturgia e literatura. A Sucessora, livro e telenovela, ocupam meu imaginário desde 2015, quando assisti à telenovela pela primeira vez por causa de Nathalia Timberg, a tão temida vilã da história.
Trocando em miúdos: estou feito pinto no lixo!
Meus planos incluíam reler o livro antes de começar a rever a novela na íntegra. É óbvio que falhei, afinal eu também praticamente atuo como o Jurídico Nathalia Timberg, então precisei produzir mais conteúdo sobre a novela para postar na página em homenagem a ela (não segue ainda? Dá uma força pra gente!).
Para não dizer que falhei, o que fiz foi ler Enervadas, escrito por Mme. de Chrysanthème, que também se passa na mesma época que A Sucessora. Queria tentar encontrar pontos de aproximação e afastamento entre esses dois romances. Eles têm mais de dez anos de diferença (Enervadas é de 1921; A Sucessora, de 1934), e é muito interessante perceber o quanto as duas autoras conseguiram retratar os anos 20, o mundo dos ricos e a situação das mulheres de formas completamente distintas. É quase como se um romance complementasse o outro.
Assim como A Sucessora, Enervadas ficou perdido e esquecido durante muitos anos. Apesar de Chrysanthème, pseudônimo da carioca Cecília Moncorvo Bandeira de Mello Rebello de Vasconcelos, ter sido uma autora com vasta produção literária, ela acabou sendo esquecida por nós e pelos críticos.
Porém esse esquecimento não carrega apenas o fator de gênero. Carolina Nabuco e Chrysanthème foram engolidas pelo movimento modernista. Os modernistas, na ânsia de “modernizar” o Brasil da porteira grande, jogaram muita coisa fora. Enervadas carrega o status de “romance de art-déco”, portanto não “servia” aos ideais do movimento. Cito Graciliano Ramos, com o devido crédito à newsletter de Helen, uma querida amiga, que iniciou este debate na minha cabeça:
Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva.
Tenho a impressão de que, por falar da alta sociedade carioca, esses dois romances foram esquecidos em detrimento de outros. Quando são as mulheres a fazerem esse movimento, é algo visto com maus olhos. Mas vá lá dizer ao Balzac para não fazer isso com sua Comédia Humana. Percebem o mecanismo?
Enervadas: que mecanismo!
Em 1921, ano em que Enervadas começou a ser publicado no jornal A Pátria, Chrysanthème já era presença constante na cena literária do começo do século 20. Ela assumiu a coluna de Machado de Assis em O Paiz, é mole? É importante pontuar que Chrysanthème, assim como Carolina Nabuco, era filha de gente grande daquela época: Carmen Dolores, uma das precursoras da escrita de mulheres no Brasil.
Enervadas é um romance cuja simplicidade esconde um grande mecanismo, bem estilo ao meme que inseri acima. No livro, conhecemos Lúcia, a protagonista, uma mulher que está tentando entender o diagnóstico que o médico lhe deu: o de enervada. Ela discorre sobre esse conceito e suas memórias em forma de diário, dividido em duas partes.
A grande sacada é que o diário é um grande simulacro da própria Lúcia. É por meio desse relato que nos chega, nada confiável, que a personagem vira uma obra de arte dentro da história, a serviço de uma existência tediosa. O diário é uma forma de subverter noções de gênero, zoando da burguesia e ao mesmo tempo adequando-se a ela.
Logo nas primeiras páginas, Lúcia nos conta sobre o diagnóstico de enervada, recebido pelo Dr. Maceu Pedrosa. A definição de ser uma enervada é:
Eu sou, então, uma “enervada”; e tudo isso que me atormenta de dia e de noite, esse atropelo de pensamentos, essa ânsia de gozar a vida, de não perder um pedacinho dela, de amar exaltadamente, de aborrecer depois fastidiosamente o que ontem eu adorava, serão os sintomas dessa moléstia que me atacou sem que eu soubesse o nome?
Aqui, como em todo bom Brasil sil sil dos ricos dos anos 20, as palavras francesas abundam. Enervada vem de “énervé”, uma palavra em francês que significa mais ou menos o que Lúcia se pergunta no trecho acima. É o tédio, cansar-se das coisas logo de cara. A definição de enervada é muito importante, pois ela é o mote de todo o livro: Lúcia fazendo coisas para escapar de uma existência vazia e tediosa.
Nossa protagonista conta com algumas amigas, que também são enervadas. Cada uma representa um estereótipo diferente:
Margarida: a que segue as convenções sociais. É casada, tem filhos, e Chrysanthème a retrata como a mais feliz das amigas, justamente por ter se adequado ao que esperavam dela;
Maria Helena: uma mulher que cultiva relacionamentos sáficos com outras mulheres. A presença dela na história é incrível, se pensarmos na representatividade (entre aspas, pois ela cultiva comportamentos tóxicos, aqueles papos de “ser o homem da relação”) e na naturalidade com a qual Chrysanthème fala disso;
Magdalena: viciada em cocaína, “de uma beleza de flor doente”;
Laura: ninfomaníaca.
Reparem como as enervadas são apenas mulheres que desviam da norma vigente. Não é à toa que esse diagnóstico vem de um homem, que enxerga tais comportamentos como uma doença daqueles tempos. A partir do diagnóstico do Dr. Maceu Pedrosa, Lúcia começa a contar suas peripécias para ter um pouco de emoção na vida. Elas incluem: flertar com um padre, casar-se por casar e usar morfina.
Nada consegue entreter Lúcia por muito tempo. Ela goza de uma liberdade que outras mulheres não têm, mas não consegue se desprender totalmente. Isso porque, ao meu ver, o problema é estrutural. Por mais que seja livre naquele círculo, Lúcia sempre vai esbarrar em algo maior. É como se ela corresse e voltasse ao ponto de partida.
O simulacro de Lúcia é muito bem elaborado. Tudo nela é artificial, desde a maquiagem pesada com rouge até a forma como ela se comporta nos círculos sociais. Lúcia sabe se comportar nos salões, até mesmo forjar uma imagem pura, quando se interessa pelo padre. Chrysanthème atrela toda essa artificialidade física e de ações a críticas ácidas em relação ao casamento e a outras instituições. Quando ela descreve o casamento de Lúcia com Júlio, seu parceiro de tango, é como se estivesse falando de um matadouro:
Todos os casamentos se assemelham e eu assistia ao meu como se fosse simples espectadora e não a primeira atriz dessa tragicomédia social. Enquanto o sacerdote, pensando talvez em outra coisa, nos induzia ao dever e à fidelidade, eu contava-lhe curiosamente as rugas do rosto fanado e perguntava a mim mesma o que entenderia do amor terrestre esse homem, a quem era proibido severamente amar como se deve amar na terra e como eu entendia, nesse tempo, o amor.
No fim da primeira parte, o pai de Lúcia morre, ela se separa de Júlio e entra com tudo no vício na morfina. Quando entra a segunda parte, vemos uma mudança de tom e de ações. De repente, Lúcia está mais “contida” e se entrega a Roberto Toledo, um homem que aparece na história para ser o “salvador” dela.
A princípio a gente fica até meio confuso. Ué, mas Lúcia vai se submeter a isso? Exatamente, ela vai, e não apenas isso: vai tirar um sarro básico com a situação! Quando falo no mecanismo de Enervadas, é justamente este: Lúcia vai se adequar à burguesia para debochar dela e encontrar, por fim, sua redenção.
O tom melodramático que ela usa com Roberto, como enuncia a forma como ele a curou de sua enervação mostra o quanto ela se diverte com aquela nova situação, de se fazer acreditar naquela vida de esposa feliz - e, de quebra, fazer seu futuro marido, Roberto Toledo, embarcar nessa viagem também.
Além desse casamento com um homem protetor e carinhoso, também surge um filho na história, no ventre da protagonista, para coroar o pacto burguês. É simbólico que, ao fim da história, a última frase da personagem seja:
Je m’en fiche!
Eu não me importo! (tradução livre minha)
Basicamente, Lúcia manda uma banana a tudo e a todos dizendo que ela não está nem aí mesmo, ela pode se casar, ter filhos, enfim, ela cria o simulacro dela. O final é muito bacana porque, de certa forma, Chrysanthème nos mostra como Lúcia jamais se dará por vencida. Ela aceita a farsa do casamento e do pacto burguês - contanto que seja um simulacro e Lúcia esteja no controle da situação.
A Sucessora: o mecanismo ao contrário
Para quem não conhece A Sucessora, o livro conta a história de Marina, uma jovem que morava na Fazenda Santa Rosa e acaba se casando com um viúvo milionário, Roberto Steen, e vai morar no Rio de Janeiro. Ao chegar em sua nova casa, a jovem percebe que a primeira esposa, a falecida Alice, ainda é uma presença muito forte por lá.
(Daphné du Maurier plagiou Carolina Nabuco e criou Rebecca, mas esse causo fica para outra vez.)
Quando comecei a ler Enervadas, imaginei que encontraria semelhanças apenas na forma como o mundo dos ricos é retratada. É verdade. Para quem leu A Sucessora e se lembra do “grupo”, os amigos ociosos e ricos do viúvo Roberto Steen, vai sacar a similaridade entre a descrição dos endinheirados cariocas das duas obras.
Porém, à medida em que eu ia avançando em Enervadas, algo me chamou atenção: a forma como o famoso pacto burguês aparecia nas duas histórias. Assim como Lúcia, Marina, ao casar-se com Roberto, adere ao pacto burguês, aquilo esperado de uma mulher naqueles tempos. No entanto, ao nos mostrar que a presença da falecida continua assombrando a casa e a vida das personagens da história, Carolina Nabuco também nos mostra a falência desse pacto. Não importa o quanto Marina tente se adequar. Ela pode se vestir como Alice, falar francês, qualquer coisa, mas jamais fará parte daquele mundo. De certa forma, Carolina também nos apresenta ao seu próprio mecanismo.
O mundo dos ricos, “o grupo” e a falência desse pacto burguês são elementos que se entrelaçam em A Sucessora. Logo que chega em seu novo lar, Marina conhece “o grupo”. O estranhamento entre Marina e essa galera acontece logo de cara:
E, ao lado de Marina, nos pensamentos de todos, a imagem de Alice ia e vinha, ocupando por acessos a cadeira que fora sua. A maioria dos convidados pertencia ao que Germana e Roberto chamavam “o grupo”, gente ociosa que cercara Alice, pela sua alegria e hospitalidade, pela piscina do jardim e os campos de tênis, e que agora adotara Marina como uma herança esdrúxula, dispostos a festejá-la como à outra, e a procurá-la igualmente como se a intimidade fosse com a casa, e não com a anfitriã.
O livro de Carolina Nabuco trabalha com o estranhamento o tempo inteiro. É o choque entre dois Brasis diferentes durante o livro, representados pela esposa atual e a falecida. A falência do pacto burguês aparece porque a diferença de classe é irreconciliável em A Sucessora.
Ao contrário de Chrysanthème, o mecanismo de Carolina também passa por uma visão bastante idealizada do Brasil nos fins da escravização. Marina é a representante desses tempos, visto que morava na Fazenda Santa Rosa, que conhecera seu ápice na época dos escravizados. Isso é reflexo da própria criação de Carolina e das memórias distantes de uma escritora que morou a maior parte da vida fora do Brasil.
Já Alice Steen e “o grupo” representam o Brasil do progresso, o mesmo que não pediu licença para desapropriar pessoas pobres de suas casas e erguer grandes avenidas, como a Rio Branco, e todas as obras do prefeito carioca Pereira Passos. O embate entre o atraso e o progresso passa pelo estranhamento de Marina em relação aos costumes daquela gente. Afinal, a vida na fazenda não era melhor?
A falência do casamento de Marina e Roberto se dá no nível social, e não amoroso. Isso é bastante interessante de se observar. Chrysanthème mete o pau na instituição casamento, ao passo que Carolina mantém-se bem apegada a ela. Júlio e Lúcia passam a se odiar, Roberto e Marina precisam enfrentar forças externas para que o amor entre eles sobreviva.
Sendo assim, o que fica em A Sucessora e Enervadas é que a aparência é mais importante do que tudo. Sem aparências, é insuportável sobreviver em sociedade. Lúcia escolhe burlar e ao mesmo tempo seguir as aparências, ao passo que Marina percebe que precisa se impor ou então sucumbir às aparências.
De qualquer forma, independentemente do final dos dois livros, acredito que são leituras muito preciosas para quem busca os relatos de uma época, ainda mais escrito por mulheres. De forma mais contida ou não, ambas as autoras abordam pontos muito caros até hoje. Os modernistas discordariam disso, risos.
Como sempre, esta cartinha ficou enorme. Agradeço por você ter chegado até aqui. Gostaria de recomendar outros textos que escrevi dentro do universo A Sucessora e anos 20:
Se você gostou desta cartinha, é possível responder a ela em forma de e-mail. Caso queira fazer isso por outro canal, fique à vontade para me encontrar em:
Um beijo, se cuide e veja A Sucessora no Canal Viva!
Jess
Jess, seu texto todo é um mecanismo!
Primeiro, eu ri muito porque quando você disse "Nathalia Timberg, a tão temida vilã da história" eu tomei um susto, já que aquele story que você postou da cena de cancelamento da festa de ano novo, eu pensei "que casal idiota, coitada da Nathalia", jurando que ela era a mocinha XD hahahaha
Depois, "Cecília Moncorvo Bandeira de Mello Rebello de Vasconcelos", uau, que nome é esse? Amei???? monCORVO!!! Eu sei que o Cabral de Melo Neto e o Manuel Bandeira são parentes... ela também é ou é apenas uma coincidência de elites descendentes de portugueses desta virada do 19 para o 20?
A capa de Enervadas é um must, coisa rara nas editoras hoje em dia hein? Quero ler, muitos temas aí me causaram interesse.
Depois, obrigada por me citar citando Graciliano 🤧💜 fico comovida. Preciso terminar esse livro logo porque sei que terei muita coisa a citar hehehe
No mais, adorei essa análise das duas obras.
eu não fazia ideia desse lance do plágio, to chocada!!!
e claro que amei saber sobre esses livros e sobre a novela, já procurei aqui na globo play p assistir!