9 - Biografia é repovoar o passado
O trabalho de ourivesaria e lapidação de uma futura biografia sobre Nathalia Timberg
Oi, como você está? Espero que esteja tudo bem por aí :)
Sou um fracasso na cozinha. Me falta disposição e paciência para ver a magia acontecer. Por isso minha comida não tem gosto, eu acho. Começo com essa metáfora sobre cozinhar porque ela também diz muito sobre quem sou: uma pessoa apressada e ansiosa.
Observar o processo é algo que me sempre me deixou ansiosa. Eu sempre quis chegar logo. Morando em São Paulo, percebo como essa característica simplesmente inflou. Você coloca o pé na rua e já sente uma ansiedade desconhecida, a vontade de acabar logo (mas o quê?), de chegar logo (mas aonde?). Não é à toa que meu corpo somatizou tanta ansiedade.
Por conta dessas características, minha escrita sempre foi quase como um vômito saindo da boca: quente, rápido e sem tempo para pensar. Eu não queria reler, só colocar para fora. Ao longo dos anos, fui percebendo como a etapa de reflexão, de colocar o texto para marinar, como se fosse um fermentado que os coreanos adoram comer, era de extrema importância. Se um texto não fermenta, ele não poderá atingir o ponto de maturação.
E aí, comecei a perceber como os processos se inverteram: passei a apreciar mais a etapa de ver a massa do texto crescer. Nathalia Timberg, grande atriz brasileira, sempre diz que adora o momento dos ensaios de um espetáculo, mais até que o resultado final. É no ensaio que se pode experimentar, cheirar, sentir. Com a escrita, é a mesma coisa. É na hora da pesquisa para um texto que podemos grudar os dedos com massa, adicionar mais ingredientes e testar.
Por trás de ver a massa crescer, mas nunca chegar ao pãozinho pronto, também revela-se o medo de executar e dar errado. Assim, a pesquisa, o período em que a massa cresce, é uma forma de apoio, um alicerce que a gente cria para que o pão não toste. Apreciar o processo, mas não se prender a ele, é um equilíbrio delicado. Fazendo o recorte de gênero, para as mulheres é ainda pior. Queremos ter a segurança de onde pisamos, aquela referência na manga, para apontar na cara da primeira pessoa que questionar nosso trabalho. Nos preparamos para os possíveis ataques.
Há seis anos, administro junto com minha namorada uma página no Instagram para Nathalia Timberg. Muitos de vocês já conhecem essa história, ou parte dela. Alguns sabem do dia em que, ao ver o carro dela se afastando ao longe, eu sentei numa calçada da Rua Siqueira Campos, no Rio de Janeiro, e chorei. Chorei até soluçar. Nathalia sempre acionou as emoções mais profundas em mim.
Não sei mensurar quando a ideia de escrever uma biografia sobre ela passou pela minha cabeça. É como se ela sempre existisse em alguma instância da minha mente. Se eu fosse chutar, aconteceu a partir do momento em que a pesquisa sobre a carreira dela começou a se tornar um quebra-cabeça para mim. Encaixo uma peça aqui, mas e esta outra? No difícil quebra-cabeça da vida de Nathalia Timberg residem muitas peças: a criação dentro da cultura judaica, a imigração de seus pais para o Brasil, o elo com as profundas mudanças nas artes cênicas brasileiras a partir dos anos 50, o nascimento da televisão e da telenovela, entre tantas outras.
Ao colocar tantas peças diante de mim e conseguir encaixar algumas, é que tive a profunda revelação de que aquela trajetória não era mais “minha”. Nathalia Timberg é um personagem público de todas as mudanças elencadas acima. Quando olhamos para sua carreira com atenção, não vemos apenas o que ela fez, mas sim o testemunho de uma época. É por meio da trajetória dela que conseguimos desenrolar o fio do que foi o Brasil da metade do século XX em diante.
De certa forma, por todo meu trabalho com a página para ela no Instagram, eu já era biógrafa sem saber. As pessoas vêm nos procurar quando precisam de determinadas informações sobre a vida da atriz. Elas sabem que há credibilidade nas nossas fontes, por isso jogam a bola para nós. Nunca vou me esquecer do dia em que peguei o único livro que existe sobre a vida dela e conferi um a um os espetáculos que ela fez na década de 50. Encontrei muitos erros. Ali eu já era biógrafa sem saber, fazendo o famoso fact checking que faz parte do processo de escrever uma biografia.
A palavra “biógrafa” ganhou mais força quando passei a frequentar a casa da minha futura biografada. Uma biografia se faz nos detalhes. Não recorremos apenas às fontes escritas, mas tudo que é material pode ser usado numa biografia. Dessa forma, respirar o mesmo ar que Nathalia, entender como ela escolheu morar na casa que, provavelmente, será o último lugar no qual ela vai morar é um processo biográfico.
Estes são alguns detalhes da casa dela em fotografias:
Ontem, antes de retomar este texto, eu tive a primeira aula do curso Biografia: da escolha do personagem à edição do livro, ministrado por Karla Monteiro, biógrafa de Samuel Weiner e Leonel Brizola. Foi incrível por vários motivos. O primeiro deles é que a ministrante era uma mulher.
Nos últimos anos, tenho percebido que o mercado editorial tem publicado mais biografias escritas por mulheres. Cresci lendo as biografias incríveis de Ruy Castro, Fernando Morais e Lira Neto, mas confesso que me incomodava (incomoda) muito o fato de não ver as mulheres ocupando o mesmo espaço que esses nomes quando falamos em biografia. Eu não quero que minhas referências sejam apenas homens. Por isso foi uma alegria imensa ver Karla contando seu processo de pesquisa para a biografia de Samuel Weiner. Aliás, só de ter entrado na empreitada de biografar uma figura como Weiner, Karla já é uma referência.
A biografia de Marco Nanini, recentemente lançada pela Companhia das Letras, também foi escrita por uma mulher. Estou lendo e gostando muito. A autora, Mariana Filgueiras, tem uma visão parecida com a minha na forma de escolher o recorte da biografia, mas isso é assunto para outro texto. Meu conselho é: leiam esse livro.
Outro motivo pelo qual adorei a primeira aula é que tudo o que foi falado só reforçou que estou no caminho certo. Entre crises de ansiedade e choro, estou sempre duvidando da pertinência deste projeto. Será que vão se interessar? Será que é relevante? Mas sou uma anônima, sem contatinhos (não vale dizer que sou amiga da biografada, pois sei que ela não vai me ajudar, risos), o que estou fazendo? Arranjando mais um motivo para tensionar minha mandíbula? Quando Karla deu a aula e explicou algumas coisas sobre o processo de escolha do personagem da biografia, percebi que eu já tinha boa parte do que era necessário pronto.
O que tenho:
Um projeto de 23 páginas;
A construção de bibliografia (de um capítulo por enquanto);
A famigerada “paixão pelo personagem”.
Eu tinha prometido no meu finado blogue escrever sobre o processo de escrita da biografia, mas falhei rude. É porque o processo pode ser resumido em uma única palavra: caos. Caos porque fiquei doente nos últimos dois meses, o que comprometeu meu trabalho e a escrita. Caos porque eu não conseguia me sentar e ter tempo. Caos, caos, caos.
Decidi escrever sobre o processo nesta humilde newsletter. Vira-e-mexe, vocês vão receber textos sobre progressos (ou não) que ando fazendo neste terreno. O primeiro, e mais óbvio progresso, é a escolha do recorte do objetivo da biografia:
Qual foi o papel de Nathalia Timberg nas profundas mudanças
nas artes do século XX?
Minha ideia não é me debruçar sobre fuxicos, mas sim sobre o papel que Nathalia teve nas mudanças das artes a partir dos anos 50. Ela praticamente viu o teatro moderno nascer e ajudou a criá-lo. Ao ganhar uma bolsa para estudar teatro em Paris, Nathalia teve contatos com grandes nomes do teatro moderno europeu, como Jean-Louis Barrault. A forma como ela usaria esses ensinamentos quando voltasse ao Brasil, em 1953, definiria para sempre a divisão profunda que o teatro brasileiro sofreu na década de 50. Além disso, Nathalia já estava presente em etapas anteriores à modernização, ou seja, nas políticas de Estado para o teatro, criadas por Getúlio Vargas, pois ela fez parte de uma companhia de teatro infantil.
Também decidi escrever um capítulo para apresentar a possíveis editoras interessadas. Pensei com meus botões: “Qual ocasião mais interessante para se apresentar Nathalia Timberg do que em sua estreia profissional na peça Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues?” Explico: essa estreia foi um rebuliço na época. Por conta dos temas fortes para o período, como incesto, uma parte do público levantou da cadeira para aplaudir, enquanto a outra vaiava. Dá para imaginar? É isso que pretendo reconstituir ao longo desse capítulo.
Aqui a própria Nathalia conta como foi:
É claro que, para biografar uma época específica, precisamos conhecer o que antecedeu essa estreia apoteótica. Foi por isso que eu embarquei na viagem de conhecer as políticas que Getúlio Vargas criou para a classe teatral, mais ou menos dez anos antes de Senhora dos Afogados. Os caminhos da pesquisa são engraçados e nos levam a descobertas incríveis.
No começo da pesquisa do período de 1930-1945 no teatro do Brasil, eu duvidei inúmeras vezes do que aquilo acrescentaria aos anos 50. Por que eu não vou direto aos anos 50? Meu Deus, eu esperava encontrar fuxicos e estou lendo sobre leis trabalhistas! Eu sei, erro de principiante. Pois significava muito, já que foi lendo sobre as políticas para “elevar a arte no Brasil” que encontrei Nathalia Timberg envolvida com o teatro infantil, que era subsidiado pelo governo. Lá estava ela, uma criança, já atuando nessa companhia. Fiquei muito emocionada com essa descoberta.
Estes é um dos livros que me ajudou a entender como a classe teatral se mobilizou pelas políticas públicas envolvendo o teatro, a discussão de sempre entre “teatro sério versus teatro para rir” e criar o panorama de vinte anos antes:
Ler sobre um tempo distante da ação me ajudou muito quando dei um salto mortal e fui parar na história de Nelson Rodrigues. São muitas histórias se cruzando para culminar em uma só, percebem? Por isso é um trabalho tão exaustivo, e não é à toa que biógrafos levem um ano só para levantar bibliografia, ler e fichar conteúdos. Estou tendo uma pequena noção do que serão os próximos anos de dedicação a esse projeto.
Ainda não comecei a escrever, mas pretendo usar esta semana livre de trabalho para começar a esboçar. A escrita, confesso, é a parte que mais me assusta. Eu anotei tantas coisas, mas tenho medo de não conseguir passar para o papel de forma envolvente, entendem? Mas, já dizia Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser: “Es muss sein.” É preciso fazer. Não há outro caminho.
E assim a gente vai indo pelos caminhos da vida de uma biografada.
Este humilde texto finalmente chegou ao fim. Obrigada por ter chegado até aqui. Se você quiser responder à cartinha, é possível me encontrar em:
Um beijo e se cuide,
Jess
oi, Jess! eu adoro biografias, vou adorar caso você continue falando do processo de pesquisa e escrita por aqui. a sua "paixão pela personagem" é contagiante desde quando eu acompanhava só pelo twitter 💜
ai que tudo!
Espero que tudo dê certo e em breve possamos ler essa bio!