21 - Véronique Sanson: a pioneira do pop rock francês
Compositora, pianista, arranjadora, produtora e cantora, ela foi a responsável por uma revolução na música francesa a partir dos anos 70.
Um belo dia na pandemia, na minha Daily Mix do Spotify, apareceu uma tal de Véronique Sanson. Logo de cara, a presença forte do piano na música me chamou atenção. Pensei: “Nossa, mas é tão parecido com o Elton John!” Depois veio a voz, com uma certa melancolia, e por último a letra da música. A música em questão se chamava Le Maudit:
Mal sabia eu que, alguns anos depois, eu começaria uma história de amor com sua pessoa, suas composições, seus arranjos, culminando com o ápice: comprar um ingresso para assistir ao seu show na França. A graça da vida é que as coisas acontecem no momento em que precisam acontecer. No caso, mergulhar em Véronique Sanson foi alento de que eu precisava para me alienar durante uma fase pessoal difícil.
Véronique Sanson não é muito conhecida no Brasil. Este texto é uma singela tentativa de compartilhar todo esse mergulho visceral na discografia e na vida de uma das lendas do pop-rock francês. Ela merece. Compositora, arranjadora e produtora, Véronique foi uma revolução logo que estourou na música francesa, no começo dos anos 70.
Até aquele momento, mais precisamente no fim dos anos 60, havia poucas cantoras, ou quase nenhuma, que cantavam as próprias composições. O iê-iê-iê já se encaminhava para o fim, e a virada do cenário indicava um período em que músicas mais ingênuas, como as cantadas por France Gall, seriam engolidas por produções mais maduras, como as da própria Véro (apelido carinhoso dado a ela pelos franceses). Quando ela surgiu no cenário musical, a cantora Françoise Hardy declarou que aquilo selou o fim definitivo do iê-iê-iê.
Um exemplo do tipo de música que se fazia na França durante os anos 60. O iê-iê-iê francês logo seria soterrado; e a própria France Gall obrigada a dar um giro de 360 graus em sua carreira. E adivinha quem foi o responsável por essa reviravolta? Michel Berger, o ex de Véronique Sanson.
Véronique entra no cenário musical de fato com o álbum Amoureuse, de 1972, embora já estivesse cantando desde a metade dos anos 60. Antes do sucesso, ela tinha um conjunto musical com a irmã, Violaine, o Les Roche-Martin. Um detalhe interessante é que o nome do grupo foi escolhido quando Véro abriu uma lista telefônica e procurou por sobrenomes populares na França. Foi assim que ela achou Roche-Martin. Segundo a própria, eles queriam fazer sucesso, serem populares, o que explica a escolha desse sobrenome. Mas, infelizmente, o grupo flopou. Ou será que felizmente? Talvez se isso não tivesse acontecido, ela não teria seguido carreira solo.
Amoureuse foi gravado em apenas três dias. Incomum para os padrões da época, a voz e os instrumentos foram gravados juntos. Foi como uma apresentação ao vivo. É nesse álbum que apareceria uma figura importantíssima na vida e carreira de Véro: o cantor Michel Berger, produtor de seu primeiro álbum e namorado dela na época. Ele foi o amor da vida dela, mas também o motivo de um tormento incessante, transformado em álbum, Le Maudit (O Maldito, em tradução livre) e em tantas outras canções icônicas, como Pensées Mortelles (Pensamentos Mortais, em tradução livre). Isso porque Michel, ao lado dela, protagonizaria uma das histórias mais lendárias da música pop francesa: a cantora disse a ele que ia comprar cigarros e nunca mais voltou para casa.
Quer dizer, ela passou em casa, pegou seu passaporte e partiu para os EUA, para se casar com outro homem, apresentado pelo próprio Michel.
Era o cantor Stephen Stills, do trio estadunidense Crosby, Stills and Nash.

Uma história digna de novela, porque é disso que a gente gosta.
Voltando ao Amoureuse, esse primeiro álbum tem músicas que Véronique compôs para o próprio Michel, como a própria faixa que dá nome ao disco. Reza a lenda que ela compôs a letra quando voltava para casa, depois de estar com ele. A letra é arrebatadora, contando tudo o que ela sentia por ele. Traduzi uma das estrofes livremente:
E eu me pergunto
Se esse amor vai ter algum futuro
Quando estou longe dele
Quando estou dele
Eu não sou mais eu
Não estou mais aqui
Sinto a chuva de outro planeta
Amoureuse - Composição: Véronique Sanson
Véro e Michel eram unha e carne. Se conheceram antes da fama por causa dos pais de ambos, que se frequentavam. Quando Michel entrava no estúdio com Véronique, eles costumavam fazer duelos de piano e competições de compor músicas da noite para o dia. Eles compunham em um dia e, no dia seguinte, mostravam um ao outro o que tinham feito. O amor pela música os unia.
Amoureuse contém influências brasileiras, porque, mais uma vez, era algo que ela e Michel partilhavam. A canção Bahia é um exemplo interessante. Naquele momento, a influência da música brasileira sobre a francesa era fortíssima, vide Fio Maravilha, de Nicoletta, uma versão de Filho Maravilha, de Jorge Ben Jor.
Como eu comentei no começo do texto, uma coisa que chama atenção nas músicas dela é a presença do piano. Em Amoureuse, não é diferente. Isso porque Véro toca piano como ninguém, e para mim ela é quase como um Elton John quando se senta diante desse instrumento. A própria faixa Amoureuse é praticamente piano e voz, dando um tom bem dramático ao que ela fala na letra.
Um detalhe que reparei, bem depois de saber todos esses babados, é a capa desse disco. Cara, como a semiótica é um negócio maravilhoso. É uma capa bem ingênua, Véro está sentada, segurando um minipiano, com uma roupa bem simples, talvez sem saber o que viria pela frente. É um reflexo da moça tímida que, depois que estourou, se recusava a fazer shows ao vivo. Para contornar a timidez, Michel e o empresário dela a fizeram se apresentar no restaurante da Torre Eiffel (!!), para que ela criasse confiança. Deu certo.
Mas, então, como é que pulamos para um terceiro álbum, no qual ela conta toda a história de ter deixado Michel para trás? É doido pensar que tanta paixão pudesse se esvanecer em pouco tempo. Basicamente, antes de Taylor Swift, lá estava Véronique apropriando-se do que viveu para contar sua versão dos fatos. Isso é o que me fascina em todas suas letras, é como se pudéssemos conhecê-la através dos versos.
A história desse coup de foudre entre Véro e Stephen começou no Olympia, casa tradicionalíssima de shows parisiense. Michel a levou para assistir Crosby, Stills and Nash, e ela se apaixonou pela música deles - e por um dos vocalistas, risos. Alguns dias depois, Véro foi até sua gravadora e lá estava Stephen. Segundo a própria, os dois saíram de mãos dadas, e ela já sabia que a coisa ia degringolar. Ela queria e não queria aquele homem. Quis o destino que, um dia, numa atitude de entrega total, ela pegasse o passaporte e partisse para Nova York, nos EUA. A cantora Nicoletta, grande amiga de Véronique, foi a pessoa que financiou a ida dela para os EUA, porque nem dinheiro ela tinha para fazer essa loucura.
Como vocês podem imaginar, essa história deu pano para manga. A irmã de Michel nunca mais falou com Véro. Elas só voltaram a conversar quando Berger faleceu, no comecinho dos anos 90. Véronique partiu para os EUA, um país totalmente diferente do seu, no qual ela se sentia deslocada, mas apaixonada o suficiente para sustentar o fardo do que havia feito.
No outro lado do oceano, na França, Michel Berger tentava entender o que havia acontecido. Em 1972, ele colocou todos seus sentimentos de frustração e abandono para fora através do álbum Coeur Brisé (Coração Partido, em tradução livre). Ele já tinha algumas canções prontas, mas adicionou outras composições, que foram direcionadas para Véronique. Uma delas, a mais marcante para mim, é Ce que la pop music a fait d’une petite fille (O que a música pop fez com uma moça, em tradução livre):
O que eu sei é que aquele sorriso lindo dela desapareceu
E aquelas composições dela, ela não compõe mais
O amor, hoje em dia, não significa mais nada
Talvez a gente tenha cantado muito sobre ele
E eu compreendo tudo isso muito bem
Mas esse amor precisa resistir
Ce que la pop music a fait d’une petite fille - Composição - Michel Berger
Nesse cenário, obviamente, Véronique Sanson se sentia muito culpada pelo que havia feito. A gravadora ligava para ela, perguntando onde é que estava o novo disco. A questão é que ela nunca havia produzido nada, porque essa função era de Michel. Foi aí que ela decidiu fazer tudo sozinha: arranjar, produzir e compor as músicas de Le Maudit. O resultado não poderia ser mais incrível: é com certeza um de seus melhores discos.
Com muitos toques de melancolia, tem sentimento de todos os lados: a gravidez, as drogas, o álcool e a culpa. Tudo foi eternizado nessas músicas. Foi a partir daí que, segundo Véro, que ela se comunicava com Michel por músicas. Ela adicionava coisas às composições dela que só eles sabiam, e ele respondia lançando outras canções para ela. Assim foi até o fim da vida dele.
Véro se trancou no estúdio de sua casa com Stephen, no Colorado, e lançou, como um canhão, as bombas de Le Maudit, começando pela faixa que dá nome ao disco. Basicamente, o eu-lírico da canção é a própria Véronique. Traduzi as melhores partes para vocês entenderem o teor do tormento:
Você não está bem na sua pele, você chora
Sem poder nunca ser consolada
As pessoas riem pelas suas costas, não dê bola para elas
Você se sente sozinha nessa cidade de milionários
As pessoas riem pelas suas costas
E, no fim das contas, de que isso importa?
E você sorri para todo mundo
Aprisionada pelo seu segredo, mas a dor apaga sua culpa
Le Maudit - Composição: Véronique Sanson
Como se não bastasse, ela ficou grávida de seu único filho, Christopher. Dá para imaginar como estava a cabeça dessa mulher? Culpada por ter abandonado um homem, mas feliz por estar grávida. É o que ela comenta na faixa Christopher:
Uma época sombria está chegando
Eu sinto dentro da minha cabeça
Você tenta me dar
Um pouco de esperança e um sorrisinho
Mas você não pode enfrentar todos os meus demônios
Christopher está me chamando
Eu sinto meu bebê
Ele se mexe e eu me sinto feliz
Ele sente toda a minha tristeza
Ele me faz cantar essa canção de ninar
Christopher - Composição: Véronique Sanson
Infelizmente, Stephen se revelou um homem violento, que a agredia, pelo que ela dá a entender em seu livro de entrevistas, La Douceur du Danger (A Doçura do Perigo, em tradução livre). Em seu período nos EUA, Véro teve o primeiro contato com o álcool, que se tornaria um vício. E isso ela só revelou na época do disco La Douceur du Danger, em 2001. Mas isso é história para mais adiante.
A verdade é que Véro achava muito difícil se adaptar aos estadunidenses. Uma das coisas interessantes que ela comenta sobre esse período, quando perguntada sobre a questão da liberdade sexual, é que havia “liberdade”, e não “libertinagem”. Que, embora fosse a época dos hippies, os estadunidenses tinham uma cabeça bem conservadora. A bebida acabou se tornando uma companhia constante, muito porque era o que todos faziam naquele período. Isso me lembra quando Joan Didion disse, em seus diários de terapia, que ela acordava e dormia com um copo de bebida na mão.
É dessa época nos EUA que nasceu Hollywood, outro álbum que vale a pena ser ouvido. Nele, Véro compôs músicas para Stephen, mandando aquele recadinho de que não o aguentava mais. Em Bernard’s Song, todos achavam que ela falava do produtor de seus discos, Bernard Saint-Paul, mas na verdade o eu-lírico da música era ela mesma. Nessa música, Véro fala sobre a bebida (“Ele nunca recusa um copo de vinho") e sobre a sensação de não pertencimento e identidade (“Ele nunca está em nenhum lugar, ele não pertence a nada”). Talvez já fosse a hora de voltar para sua terra natal. E foi o que ela fez. Separou-se de Stephen e voltou com Christopher para a França.
A produção discográfica de Véronique é imensa. Eu ficaria discorrendo durante horas sobre cada um de seus discos. Como este texto já está enorme, gostaria de tocar em alguns pontos que acredito serem muito interessantes sobre o atravessamento de sua vida pessoal em suas canções.
Quando Michel Berger morreu, em 1992, Véro declarou que sentia que havia expiado toda sua culpa. Ela fecharia esse capítulo definitivamente com diversas homenagens a ele: um disco cantando apenas composições dele (D’un papillon à une étoile, um xuxuzinho de álbum) e um show nessa mesma linha. O curioso é que o disco que era uma homenagem a Michel acabou gerando uma certa polêmica quando foi lançado.
Depois que Véronique o abandonou, Michel refez sua vida ao lado da cantora France Gall. Como eu disse, ele foi o responsável pela reviravolta de 360 graus na carreira de Gall, compondo e produzindo os melhores álbuns de sua carreira. A mídia, é claro, sempre colocou uma contra a outra, ainda que ambas afirmem que nunca houve ressentimentos. Quando Michel faleceu, é claro que a mídia não deixaria de estimular essa suposta rixa entre elas. Véro foi acusada de querer monopolizar a dor de France, como se apenas a esposa pudesse homenagear o falecido marido. Véronique conta que chegou a falar com France sobre o disco, e ela não fez objeção. Não dá para excluir a influência de Véro na trajetória de Michel, ainda que, quando saiu um box com a discografia de Berger, Véronique foi sumariamente esquecida nos textos que acompanhavam os CDs.
Em 2001, quando o livro de entrevistas com ela, La Douceur du Danger, foi lançado, juntamente com um documentário sobre a vida dela, todo mundo teve o choque de saber sobre o alcoolismo da cantora. Nas duas mídias, Véro contou com detalhes que foi seu filho quem a confrontou um dia, dizendo que sua relação com o álcool era muito estranha. Foi a partir daí que ela começou seu caminho de reabilitação, depois de quase 30 anos bebendo. Para mim, esse gesto da parte dela, de compartilhar um lado vulnerável, é algo bastante corajoso. Infelizmente, esse livro de entrevistas não tem tradução para o português, mas uma das coisas que ela diz sobre a bebida me marcou demais:
Com a bebida, eu me sentia menos tímida, como se eu pudesse fazer tudo.
Enfim, chegamos a 2025, ano em que Véronique percorre a França com sua turnê de despedida, J’ai envie de vous revoir, um sucesso de público. No ano passado, ela tinha feito a turnê Hasta Luego, mas ela teve que fazer mais alguns shows para suprir a demanda do público. Nem acredito que estarei em uma dessas apresentações. Tenho respirado, comido e dormido Véronique Sanson. Sinto que ela é uma amiga distante, que me faz refletir sobre minha vida por meio de suas músicas. Ela está comemorando toda uma carreira incrível, uma criatividade incrível, pois 99,9% de suas músicas são de autoria própria.
Ela tem 75 anos e continua no palco. Que bom para nós, seus fãs.
Gostaria de terminar este texto indicando meus álbuns preferidos de Véro. Lá vai:
Sans Regrets (1992)
Le Maudit (1973)
D’un papillon à une étoile (1999)
Véronique Sanson (1985)
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Jess