15 - A tradução é um ato de coragem e a pesquisa é a trama de tudo
Uma breve reflexão sobre a importância da pesquisa no ofício tradutório
Sou uma tradutora cansada, mas ainda imensamente apaixonada pelo ofício desafiador que escolhi para trilhar nesta vida da porteira grande.
Qualquer pessoa que leve essa profissão a sério, com respeito, admiração e até mesmo medo está à beira de um burnout. São muitos fatores que nos jogam para o abismo, mas um deles está em voga nos últimos anos: a inteligência artificial.
Os robôs vão nos substituir? Será mesmo? A IA veio para ajudar ou dificultar nosso trabalho? Na semana passada, topei com mais um texto, no site do UOL, sobre tradução que se faz essas perguntas. Vale a pena ler quando tiver um tempinho. O autor discorre sobre a tarefa tradutória, quase impossível, um ato de coragem, já que existe a ideia de que sempre vamos trair o original em algum momento.
Depois que li, fiquei pensando que uma parte essencial desse ofício não apareceu no texto: a pesquisa. Um bom tradutor deve ser um exímio pesquisador na minha opinião. O texto é como a trama de um tecido que está sendo fiado. Se você virar qualquer peça de roupa do avesso, vai ver a costura. A pesquisa é a costura que segura o tecido, oferece a possibilidade de olharmos para o resultado final, do outro lado da peça. Se a trama for arruinada, o que veremos é algo torto, capenga e fraco.
Muito antes de eu ser tradutora, quando eu ainda flertava com o jornalismo, a pesquisa já era algo muito presente na minha vida. Tem uma historinha que aconteceu comigo que eu adoro, porque ela ilustra a metáfora da trama do texto. Na adolescência, eu era muito fã de uma cantora brasileira chamada Silvinha Araújo. A internet estava nascendo, e o acesso a determinadas coisas era muito mais difícil. Eu fazia literalmente um trabalho de campo: passeava em sebos no centro da cidade, vasculhava os balaios das Lojas Americanas em busca de CDs dela, mandava e-mail para a gravadora que ela tinha com o marido encomendando outros CDs.
Um dia, eu estava almoçando em frente à televisão, ligada na TV Cultura. De repente, no meio do Rá Tim Bum, um programa da minha infância, eis que me deparei com uma aparição da própria Silvinha. Quase cuspi a comida. Aumentei o volume e comecei a ter uma síncope. Ela estava cantando uma música infantil junto com outras três pessoas que eu nunca tinha visto na vida. Dali em diante, entrei numa piração. Eu ficava esperando todo dia, no mesmo horário, para ouvir aquela música de novo. Tive sucesso pouquíssimas vezes. Era como procurar uma agulha no palheiro.
Eu me sentia atirando uma garrafa no mar, da mesma forma quando eu enviava e-mail para o SBT, pedindo ajuda ao Gugu para conhecer Silvinha. A ingenuidade da jovem…
Uma sensação que me marcou muito nessa aparição foi a de ter sido atropelada por uma locomotiva. Com aquele sentimento de que alguém que você ama demais fez parte da sua infância, que, de alguma forma, já estava com você desde sempre. É a mesma sensação que tenho com Nathalia Timberg hoje em dia. Ali estava a Silvinha, no começo dos anos 90, quando eu era criança e assistia a esses programas educativos, cantando uma das músicas mais difíceis da música brasileira, já que se tratava de um trava-língua. Com aqueles dentinhos separados que eu amava. É como se a Jess criança se reencontrasse com a Jess adolescente.
Além de eu esperar para rever a aparição dela, comecei a pesquisar na internet. Nessa época, eu fazia parte de um grupo de Jovem Guarda num fórum do Yahoo, e a gente trocava ideias com pessoas muito diferentes. Uma delas era o pesquisador Marcelo Fróes. Hoje em dia ele é responsável pela gravadora DiscoBertas, responsável por resgatar a discografia de diversos artistas como Vanusa e Roberto Carlos. Além disso, Marcelo escreveu um dos livros que eu considero mais sérios sobre a Jovem Guarda: Jovem Guarda em Ritmo de Aventura. Ele tinha senso crítico para não jogar o movimento na lata do lixo, e eu adorava isso, porque as outras pessoas só sabiam dizer que “meu deus, que músicas alienadas”, o que sempre me irritou muito. Deve ser porque, desde sempre, eu tentei fazer justiça a tudo que era injustiçado — na música, no cinema ou na literatura.
O fato é que Fróes, nesse período, criou um canal no YouTube e começou a postar muitos vídeos que ele tinha. O acervo do cara era gigantesco. Juro. A Jess adolescente começou a surtar com aquela tonelada de programas que começaram a aparecer. E adivinhem? Um dos vídeos que ele postou foi Bate-Boca, de Edu Lobo, cantado por um tal de Quarteto 4x4. Sim, a música que eu ficava tentando rever na TV Cultura:
Como toda pessoa da internet dos anos 2000, precavida, o que foi que eu fiz? Salvei tudo. Foi como uma profecia: o canal de Marcelo Fróes caiu e todos os vídeos sumiram. Para vocês terem noção de como esses vídeos são do tempo do uepa: estão em formato FLV! Eles rodavam no Real Player, um reprodutor de vídeos mais antigo que a minha avó hoje em dia. Salvei no meu primeiro HD. É de dar risada porque esse HD está tão velho, mas ele resiste ao tempo e roda absolutamente que salvei do acervo Fróes.
Sem querer, Fróes me ensinou um dos pilares do meu trabalho como tradutora: a persistência. Bons tradutores não se contentam com qualquer coisa. Quando traduzi um documentário sobre os crimes do Zodíaco, em agosto, eu caí num buraco sem fundo porque passei metade de um dia lendo o “site oficial” dos crimes. Eram tantos detalhes, tantas provas, e eu não conseguia mais sair de lá, até que eu entendesse tudo, em todos os detalhes. O que também pode ser um inferno se você tem um prazo curtíssimo, já que não dá para parar um dia inteiro apenas para pesquisar uma palavra ou um fato. Porém, uma grande verdade é que quanto maior a pesquisa, mais a trama do texto vai ficar bem atada.
Voltando aos anos 2000, o Quarteto 4x4 foi um dos grandes desafios da historinha de ser fã de Silvinha. Não havia nada sobre eles na internet, e por isso eu recorri à própria Silvinha (nos comunicávamos por e-mail naquela época) para me contar um pouco como havia sido aquele período tão curto num quarteto que absolutamente ninguém conhecia. E foi aí que, depois de ela ter me explicado, que eu entrei num buraco mais fundo ainda. Explico: o 4x4 foi formado por Silvinha, Faud Salomão, Ângela Márcia e Edgard Gianullo.
Quando o grupo foi formado, em 1988, Silvinha vivia outra fase de sua carreira. Ela começou a cantar jingles e a ser backing vocal para diversos artistas e virou um nome muito respeitado nesse meio. Muitos podem achar que foi uma regressão para uma cantora com uma carreira como a dela, mas acho que foi justamente o contrário. Isso mostra como ela tinha ouvido musical e versatilidade, porque muitas vezes os jingles exigem capacidade de adaptação a diversos tipos de músicas e vozes. Silvinha, nesse sentido, era uma cantora quase perfeita: era solista e backing vocal ao mesmo tempo, uma dupla habilidade que nem sempre os artistas têm. Cantar jingle é algo extremamente desafiador, e ela tinha um timbre tão cristalino e limpo que é possível reconhecer a voz dela em quase todos os que ela fez. É uma qualidade ímpar e que fez dela uma cantora muito requisitada por agências de publicidade.
Nós, crianças dos anos 90, que cresceram com Em Nome do Amor… Vocês sabiam que Silvinha é a cantora da vinheta de abertura? Pois é!
Silvinha conta, em sua autobiografia Anjo Lilás, que Ângela Márcia gravava muito no estúdio Cardan, aqui em São Paulo, com Edgard Gianullo. Ele queria formar um quarteto nos moldes do The Manhattan Transfer, um grupo vocal estadunidense dos anos 70, e a voz de Silvinha era perfeita, porque ela era um contraponto à de Ângela em termos de timbre. Logo depois, Gianullo convidou Faud Salomão e o resto é história.
O 4x4 é um acontecimento na música brasileira, mas que infelizmente foi muito injustiçado, apesar de ter sido apadrinhado por cabeças da MPB como César Camargo Mariano. Quantos quartetos vocais nós conhecemos no Brasil? Cito dois: MPB-4 e Quarteto em Cy. Só que a ideia do 4x4 era fazer algo na linha do The Manhattan Transfer, voltado para o jazz. E isso não deve ter colado, embora eles tenham feito barulho, que inclui uma participação no programa do Jô Soares em 1993 e no Prêmio Sharp de Música do mesmo ano. Além disso, três membros eram desconhecidos, então o que realmente colou não foi a gravação de um disco, e sim eles começarem a gravar jingles juntos.
Você, criança dos anos 90, lembra do jingle “Abra a boca, é Royal!"? Pois adivinha quem é cantou essa peça? O 4x4! quando eu soube disso, foi como se a minha cabeça tivesse explodido de novo. Percebam como a trama é muito delicada, cheia de pequenos detalhes. Quando a gente imaginaria que eu cresceria com peças publicitárias cantadas por nossos futuros ídolos? A pesquisa é uma delícia mesmo. Sei lá, eu acho isso surreal. Mas não é: é apenas o Universo juntando peças e tramas. E o bonito da pesquisa é isto: as respostas aparecem, basta ser persistente.
Abaixo o famoso jingle da Royal cantado pelo 4x4:
Logo depois do 4x4, é óbvio que eu também entrei num outro tipo de buraco, porque eu tive que ir atrás desse tal de The Manhattan Transfer para conhecer. Me apaixonei. E eis o engraçado: Cante em Blues, uma música do 4x4, é uma versão de Boy From New York City, do The Manhattan Transfer. Mais uma vez, a trama dos fatos se cruza:
Quanto mais nós pesquisamos, mais os fatos vão se apresentando mais complexos. Datas, pessoas e acontecimentos se cruzam. E é justamente por isso que a parte mais idealista de quem sou se recusa a acreditar que uma máquina vai ter esse nível de pesquisa. Porque, veja bem, a máquina pode pesquisar, mas como ela vai ter o discernimento para entender o que presta e o que não presta? Como a máquina vai entender o caráter extremamente mutável de uma pesquisa?
Eu fiquei uns dez anos sem pesquisar sobre o 4x4 e, um dia, eu decidi que ia retomar minhas buscas no YouTube. Descobri o canal de onde eu compartilhei todos os vídeos deste texto. Alguém está resgatando essas apresentações gravadas em VHS (e que eu desconfio serem da própria Silvinha, pois ela tinha um acervo gigantesco de fitas na casa dela) e postando no YouTube. É disso que estamos falando, entende? Minha pesquisa se renovou a partir do momento em que esse material apareceu.
A máquina não tem discernimento para algo tão humano e delicado. Até hoje, sempre que peço ao Chat GPT para me dizer quem é Nathalia Timberg, ele mistura informações da vida dela com a biografia de Fernanda Montenegro, resultando em uma série de informações erradas. Não dá para confiar. Por acaso, a máquina vai procurar no BN daqui a alguns anos? Porque é lá que se encontram as informações mais confiáveis sobre Timberg. A máquina sabe disso?
Acredito muito no nosso ofício, e é por isso que, apesar de tantas adversidades que não passam apenas pela presença da IA, ainda estou aqui. É por acreditar que o olhar humano é insubstituível. Claro, é assustador perceber que existe a presença de uma cultura do “good enough” atualmente, na qual empresas oferecem qualquer coisa em termos de tradução audiovisual ao espectador, porque o público vai aceitar e está tudo bem. Mas os grandes streamings como a Netflix ainda são os maiores porque eles têm a certeza de que é preciso olhar humano para formar toda essa trama. Ainda não abriram mão desse olhar, ainda que a gente trabalhe com a IA o tempo inteiro.
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Um beijo com harmonias vocais e muita pesquisa,
Jess
Jessica, que texto rico e cheio de detalhes preciosos, parabéns pela pesquisa e por seres uma profissional competente e dedicada!
que surpresa agradável ler mais um textinho seu, jess! cheguei aqui no substack há pouco tempo, mas já estou muito feliz de receber seu conteúdo por aqui. não conhecia a silvinha, mas adorei tudo o que você escreveu! foi tudo com muito coração, nostalgia e uma IA não conseguiria fazer nada parecido <3